I Encontro de Formação em Bioética


O ABORTO NO CASO DE ESTUPRO E RISCO DE VIDA DA MULHER


Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2011


Pelas cenas e expressões que assistimos desde uma simples conversa a um debate mais elaborado em qualquer fórum percebemos o desencontro que a humanidade vive em nossos tempos.

A humanidade se mediocriza por rebaixar a sua natureza e vocação de infinito à simples e redutora busca incessante e exclusivamente circunscrita à obtenção do dinheiro e do poder. Poder este, que jamais preencherá seu coração, pois o coração humano abriga diversas outras questões saudáveis, mas perturbantes, como, por exemplo, pensar na sua origem, no seu destino e no próprio sentido da vida.

Tais questões e dimensões se chocam frontalmente com o modelo de vida atualmente proposto para nossas famílias. Inclusive, é oportuno questionarmos o que são algumas famílias. Muitas delas, infelizmente, são apenas identificadas como agrupamento de pessoas convivendo e sobrevivendo sob o mesmo teto, mas sem qualquer identidade no amor e na doação de si em favor de seus membros.

A sociedade é o reflexo do conjunto das famílias e dos valores mais preciosos destas. Se perdermos a noção de sua sacralidade e anterioridade ao arranjo estatal, a família deixará de ser uma escola de valores, de formação de virtudes e passará a ser, apenas, uma associação de valor jurídico consagrando somente o prolongamento de interesses materiais societários. Neste passo, caminharemos para perverter um dos maiores instrumentos educacionais e formadores da pessoa humana e a consequente paz (justiça) social.

É altamente necessário recuperar-se a simplicidade da vida e com ela a riqueza de ser pessoa. Isto é parte misteriosa do dom de uma relação de amor eterno do Criador com sua criatura.

A graça de termos sido queridos antes e, dessa forma existirmos, à luz do milagre da vida, que nos permitiu nascer, nos impele, também, a uma resposta efetiva de amor ao Criador e à sua bondade extrema, aceitando seu convite para uma aliança permanente para a difusão e o estabelecimento dos valores do Reino entre nós do qual toda a humanidade é dependente e ao mesmo tempo livre.

Neste tempo de total autonomia do homem em relação a Deus, trocou-se a pureza das relações por uma esperteza que, tida como essencial para conquistar desde o amor aos negócios, eliminou a confiança do centro das relações humanas causando aumento das rivalidades entre as pessoas e ampliando as tensões sociais. É como se para sermos felizes, obrigatoriamente, alguém tenha que ser infeliz.

Isto tem nos tornado um subproduto do gênero humano. Guardamos apenas um suave traço do desenho original. Nosso coração foi lancetado por este mal - a perda da identidade -, e sangra diariamente pelas guerras, torturas, suicídios, explosões, fome, miséria, cinismo e mentira.

O homem está no escuro da existência e mais uma vez está a andar a procura de uma saída sem perceber que, nesta conjuntura, há pouca chance de superação.

Mais que uma ruptura política com esse modelo, há a necessidade de uma ruptura moral com a concepção de vida proposta.

Precisamos romper os diques que represam as águas da verdade e permitir a inundação de nossos corações com valores atemporais que voltem a reorientar e a subordinar as escolhas humanas.

Mudar de fato! Mas mudar de dentro para fora.

O homem é vítima de seu próprio coração!

Tanta conquista inútil é consagrada nos altares do poder, aos holofotes da imprensa para a nação, porém, não se apresenta, durante o ato, o sacrifício invisível de milhares de vidas como custo adjacente destas ditas conquistas.

Nosso Estado está ilhado pela violência de toda a sorte. É uma guerra que se alastra e devasta a paz urbana, rural e das consciências sem obter a menor resposta das autoridades.

A mudança necessária reside na recuperação de valores precisos do respeito à vida humana e à sua promoção. Permitir-se um desenvolvimento humano capaz de proporcionar liberdade, prestigiando a educação familiar, a instrução no ambiente escolar digno para o aluno e para os profissionais da educação e o crescimento patrimonial das famílias através do trabalho com salário justo e obtido honestamente pelo suor do rosto.

Ao examinarmos o ponto proposto neste encontro, do aborto tanto no caso do risco de vida para a mulher, quanto na situação hedionda do estupro, as nossas observações anteriores são, na verdade, a sustentação de uma argumentação crítica quanto à interpretação dos códigos e as decisões judiciais adotada em parte do Brasil.

Não haveria sentido falar-se da vida e de sua defesa sem reconhecer, a priori, nela, um valor absoluto inestimável e, reconhecer, também, uma incapacidade de qualquer norma jurídica tratá-la de forma descartável, menor, diversa ou lateral à sua dignidade inalienável. Importante frisar que os direitos individuais não são criados pelo Estado, pois, antes já existiam!

A bioética consolida o entendimento que a vida humana tem uma dimensão, um valor e uma dignidade própria e superior em relação a outros seres vivos. Entender a pessoa humana de forma diferente desta é tentar ser “criador” de outra pessoa. Algo passível de manipulação, semelhante a uma coisa ou a um objeto, que tem um fim específico para uso e, após o uso, o seu descarte. Falamos, então, de algo e não de alguém.

Seguindo este curso chegaremos a um limite inferior de visão tão reducionista, que dessacraliza a vida humana, tornando-a mais ínfima do que o próprio pó e mais desprotegida que a de qualquer primata.

Como já salientamos o chamado a existir vem de Deus e o ser humano é a sua maior expressão de criação! Portanto, não se pode atribuir a condições de inteligência, a condições físicas, a condições de resistência biológica, a condições de ambiente social e, até a forma pela qual foram concebidos estes seres, a condição única de reconhecê-los como pessoa.

No que respeita, porém, ao Código Penal brasileiro, que é da década de 1940, um novo problema surgiu decorrente da Constituição em vigor, de 1988. Reza o artigo 5° da Carta Magna a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, o que equivale dizer que o nascituro também tem direito à tutela jurídica ou, ainda, que possui os mesmos direitos da pessoa nascida, a princípio, inclusive e principalmente o direito à vida, direito esse que o mesmo artigo 5° assegura a todos como inviolável: ”a inviolabilidade do direito à vida”. Nunca é demais repetir que essa garantia, por razões óbvias, interessa especialmente ao nascituro e a ele se estende. Não entender assim é excluí-lo da ordem jurídica, declará-lo não sujeito de direitos, o que exigiria uma mente monstruosa e a privação da sensibilidade moral.

Fica evidente, desse modo, que a Constituição de 88 não recepcionou a excepcionalidade contemplada nos parágrafos do artigo 128 do Código Penal. Quer dizer, nesse particular, o Código Penal foi derrogado pela Constituição que, pela hierarquia das leis, situa-se acima de um código específico, que é legislação ordinária.

Ainda em decorrência desses princípios, prevê a Constituição, no artigo 227, claramente, entre outros, como deveres da família, da sociedade e do Estado “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde... à dignidade, à convivência familiar, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão”.

A situação se reveste de um caráter ainda mais hediondo quando se observa que uma das condições alegadas para a não punibilidade do crime de aborto por ocorrência de estupro – artigo 128 - é o consentimento da mãe ou, no caso da mesma ser incapaz, do representante legal. O Código Penal, porém, determina que para a existência de um crime, conforme está expresso no artigo 1º. “Não há crime sem lei anterior que o defina”. “Não há pena sem prévia cominação legal”. Então, restam duas perguntas aos doutores da Lei: Existe pena de morte no Brasil? E, qual o crime que a criança cometeu?

Carlos Dias.

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